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domingo, 27 de outubro de 2013

O NINHO




                              


                              O NINHO

                                                                                          
                                                         Drª Ana Felícia Guedes Trindade*

Existe uma artista plástica brasileira chamada Inha Bastos que pinta imagens de calor, aconchego e ternura. É claro que esta é a minha leitura, uma leitura que vem, primeirissimamente, do lugar da emoção, e que nega quaisquer preocupações com quaisquer racionalismos de enquadramentos da arte. Quando deparei-me, pela primeira vez com a produção de Inha Bastos, identifiquei um jeito de pintar a singeleza e a ternura, algo que considero muito complexo. Entre as obras, há uma que fascina-me. Chama-se “O Ninho”. Naquele lugar do aconchego, uma figura feminina acolhe uma criança pequena, acompanhada por dois gatos sonolentos e languidamente ternos. Em meio aos tons-terra combinados com o morno da ternura, Inha traduz um ninho. Esta imagem sempre atravessa o melhor de mim: a emoção de estar no mundo acolhida.
Estar no mundo acolhida - que não trata de um eterno lugar de estar sempre acolhida no mundo, porque nossas diferenças, por si mesmas, já garantem, de alguma maneira, processos de inclusão ou de exclusão, portanto estamos também falando de um processo movediço, que não se fixa. É claro que meu estar crítico no mundo, o qual preservo como um patrimônio íntimo de imensurável valor, recorda-me as dores de todos os humanos que vivem em estado de desacolhimento, exclusão, apartados do sentimento de ser e de estar incluídos no mundo suas vidas inteiras ou grande parte delas. E dolorosamente, este atravessamento, dos sem-ninhos, toca-me, emociona-me, o que, por inúmeras vezes, encontro-me reflexionando, sobre essa dimensão, com melancolia e indignação, no andar de toda uma vida.
Nesta escrita, será dos ninhos mais possíveis de construir, destes que estão mais em nossas mãos e alcances, que desejo mais falar, independente dos contextos econômicos ou sociais que as pessoas se encontrem. Quero pensar os muitos ninhos que uma educadora, um educador, podem produzir, neste sentimento dos sistemas aninhados pelas  afecções e  subjetividades. Desde este  lugar, pretendo uma leveza nesta escrita, tentando traduzir tal abrigo deste lugar que aquece almas e corações, que produz sentimentos de conforto, ideias de segurança, que aninha e que protege do nascimento ao crescimento o que é vivo, o que é humano, sem abrir mão dos fios políticos que estas intenções provocam. Deste lugar de habitar a vida, desta casa, desta toca, deste lugar de cuidado, refletindo as tensas micropolíticas tramadas deste viver.

Uma roda que espera um ninho
Ao iniciar as aulas, retornando a trabalhar com os pequenos do 1º ano, recupero, com olhos marejados, o meu lugar de educadora inquieta. Observo a turma de 26 pequenas crianças, filhotes da curiosidade de mundo, esperando acolhimento, segurança, cuidado, atividade criadora, barulho, movimento, invenção. Observo suas fragilidades e seus olhos que esperam, que aguardam, algo que nem elas tem as exatas definições do que seja, mas que sabem do lugar da intuição e que pode margear pelo campo dos risos, dos inusitados, dos tempos sem horas, dos espaços livres, das criancices e sabedorias crianceirais. Presentes ali, em suas pupilas inquietas e pulsões dos seus múltiplos corpos, olhando-me, arremessam-me para construir o tão necessário ninho.
Na volúpia do meu ser de educadora aprendiz, surpreendo-me, feliz, felicíssima, sentindo-me felizarda por compreender que, no círculo artesanal do ninho que me proponho a fabricar sempre junto com elas, com as crianças, busco construir, com o material mais nobre, trazido do âmago das florestas encantadas, a intensidade de um desejo que sabe-se como possibilidade concreta. Quero tramar os cipós dos elementos vitais para o cuidado destas vidas em aprendências, percebê-las, lê-las, ler com respeito as suas realidades, compreendê-las, problematizá-las, abraçá-las, aprender a conviver com elas e propor-lhes aberturas e metamorfoses, deixar-me aberta e livre para que elas me proponham também, viver tempos nômades, tempos loucos por fantasias e brincadeiras e cantorias, experimentando mais, ousando mais, produzindo a importância do processo, quem sabe produzindo o bem-viver da criação, da descoberta, da transformação, da infância, da invenção em todos os tempos possíveis que pudermos viver e conviver na escola.
Recebo o 1º ano, inaugurando-me. Não reinaugurando-me. Mas  inaugurando-me, porque já não sou a mesma, de uma dia para o outro, de um ano para o outro. Não quero me recauchutar, não existe reciclagem humana. Quero nascer de novo, me gestar e me parir todos os dias. Por isso, inauguro-me a cada 1º ano que me chega, com o respeito e a fé de que estas crianças existiram seis anos, e entre tantas vivências, entre elas, estou eu, como uma companhia mediadora, para vivermos uma experiência humana singular.
Batizo-me em nome da alegria, do conhecimento e da fartura de bem-querer crianças. Batizo-me como alfabetizadora e educadora infantil que dignifica a infância. Batizo-me. Eis a minha criança eterna, que surge, viva e sorridente, me sorrindo e me aninhando, suavizando minhas nervuras de adulta professora.
Em nome de ser educadora desejante, batizo-me, mais um ano letivo, como aprendiz, e reencontro aquela que está em processos de infinitas aprendências – a criança eterna que o Fernando Pessoa tanto chama sempre. Parece-me que é só reencontrando a minha criança interior, que consigo encontrar-me com todas estas que me chegam em uma roda de 1º ano.
 Ponho-me a construir “o meu primeiro ninho de dentro”, metáfora delicada, que ramifica-se e estende-se: o ninho do meu olhar sobre o 1º ano. O ninho dos meus pensamentos em relação ao 1º ano. O ninho da minha emoção com o 1º ano. O ninho das minhas primeiras palavras com o 1º ano. O ninho da ternura, da delicadeza dos meus gestos, da firmeza amorosa. O ninho da intenção política das ensinâncias que tenham sentido, das aprendências que tenham vitalidade, da potência e essência natural do próprio viver, da importância e impacto nas vidas delas, e na minha de alfabetizadora, de pessoa, de ser humana que sou. O ninho da alegria de compartilhar, de con-versar e de cuidar do desenvolvimento e crescimento infantil humano do meu 1º ano.

Do olhar-ninho
Construir um olhar manso e compreensivamente inquieto sobre múltiplas realidades e sobre as múltiplas dimensões dos próprios viveres, abdicando do desejo perverso de formar, reproduzir e enquadrar essas realidades em algum lugar que acredita-se como professoras e professores que somos, é extremamente desafiador e arrojado. Aprendemos a ser educadores e educadoras escolares com uma marca absoluta: a de imprimir nas crianças as nossas formas de pensar, as nossas formas de sentir e as nossas formas de viver ou as que nos ensinaram. Porque elas são de adultas e adultos que sabem o que fazem, de pessoas que já viveram mais tempo, de saberes acadêmicos que já pertencemos, enfim, de alguém que sabe mais e melhor. Quão decadente e mesquinha esta compreensão! Libertar-nos dessa arrogância poderá levar uma vida inteira. Não aprendemos a ser educadores e educadoras sociais. Nem populares. A vida foi ensinando a quem esteve, por amor ou por dor, produzindo vãos em suas consciências de mundo, fissuras, estremecimentos sísmicos dos subterrâneos psíquicos, que sempre muito abrem para a consciência de mundo, para produzir pensamentos matrísticos e ampliam os olhares sobre a diversidade infinita da vida. Não conseguimos em proporções iguais ou mesmas circunstâncias. Nem todos aceitamos com tamanha humildade. Nem todos  quisemos ou queremos. Nem todos pudemos ou poderemos escolher.
 Fazer um esforço imensurável para olhar o outro na sua realidade e compreendê-lo é um exercício político cultural revolucionário criador. Criador de uma nova cultura. De uma cultura respeitosa com o outro. Não é fácil, mas é possível e é tremendamente transformador e transcriador. É um jeito de fazer um ninho: receber o outro sem crises de julgamento. Olhar o outro fraternalmente. Porque o olhar acolhe ou expulsa. Pelo olhar, criamos mundos ou destruímos mundos.

O pensamento-ninho
Construir um pensamento aberto e democrático sobre uma turma de crianças demanda enorme noção de realidade. Demanda, também, compromisso com a realidade. Pensar e reflexionar sobre uma turma todos os dias demanda pensar ativamente sobre ela, planejar com ela, sonhar possibilidades para e com ela, constituir efetivamente um trabalho com intencionalidade política que dê conta de vincular vida/escola, vida/conhecimentos, vida/aula. Pensar para o outro, com o outro, pelo outro requer saber o que se está fazendo, em primeiríssimo lugar. Saber o que se faz demanda maturidade e responsabilidade. Demanda ter clareza política do que se pretende e aonde se pretende chegar. Os pensamentos sobre os outros também são definidores de mundos: acolhemos ou expulsamos. Nossos preconceitos se fundamentaram tanto que pensar sobre o outro é pensar sempre sobre uma base de juízos e julgamentos. Mas existe o pensar sobre o outro que rompe com esta maneira limitada e curta de pensar sobre o outro: pensar que somos tão humanos quanto o outro e pensarmos o outro no seu legítimo direito de ser legitimamente outro. Falíveis, atravessados por histórias de vida, por contextos sociais, culturais, políticos e econômicos, biologicamente dependentes, todos da mesma espécie, com necessidades iguais ou muito próximas. Construir as primeiras palavras com o outro é uma responsabilidade. Abrir as comportas de uma linguagem falada com o outro, nos expõe frente ao outro, ao olhar do outro, ao pensar do outro, mas é verdadeiramente transformador e transgressor. A relação vai depender de uma troca de linguagem, de uma compreensão da linguagem do outro, de uma aceitação do outro, de uma interação com o outro, por meio das palavras.

As palavras-ninho,
a emoção-ninho
As primeiras palavras com o outro fundarão o mundo dessa relação. Também pelas palavras acolhemos ou excluímos. As palavras são poderosas naquilo que elas carregam de valor simbólico. As primeiras palavras com crianças e jovens definem a relação que desejo construir com eles.
Emocionar-se é fundante. Sem a Emoção não abrimos espaços para as latências, para as pulsões, para os desejos, para os sonhos. As latências e pulsões emergirão pela emoção, tramarão-se com os desejos, que nascerão pela emoção. Os sonhos engravidam de projetos que nascem da emoção. A emoção é uma categoria existencial. É uma categoria do vivo, do humano. Pela emoção, universos se estendem. Quem está com sua emoção muito controlada, deve pensar sobre os anestésicos culturais e sobre os gessos históricos que aceitamos vida afora. Emocionar-se com o outro está na superfície da vida da vida. Não tem que escavar para encontrar emoção. Se tivermos que escavar muito precisaremos nos perguntar se ainda estamos vivos. Emocionar-se é uma condição do vivo. É uma condição da nossa humanidade. Palavra e emoção, tramadas, são nichos que aninham.

Produção de sentidos - ninho
 Também fazer da escola um lugar de existir que seja significativo não pode ser apenas em discursos e teorias anunciadas. A Escola precisa ser significativa também para o educador, para a educadora. Ao entrar nela, precisamos estar com a emoção ainda à flor da pele, um novo rosto e um nova e provisório saber, um novo projeto, um novo livro, uma novo sabedoria, uma questão transgressora, um velho saber dos bons bem afiado, um velho saber ressignificado, um compromisso com o outro, uma aprendizagem de repente, um inusitado gesto de delicadeza e reconhecimento, uma irreverência da turma, uma contestação na reunião pedagógica, uma alegria inesperada, um protesto sindical potente, um desejo convicto de dignidade são sinais vitais de que ali existe vida. Para o educador/educadora a escola também precisa produzir sentido. O dia que a escola não tiver mais o sentido de produção de sentido, o sentido de produção de vida para o educador e educadora, a escola não é mais o seu lugar. Deixou de ser. Já foi. Ressignificar a Escola lembra um reapaixonamento e uma consciência ampliada de que ali, por ter pessoas, é um dos lugares mais bonitos e políticos da vida. Que pode ser um lugar de vivermos nossas belezas, nossas políticas, nossas verdades. Não se faz política sem beleza e sem verdade. Política que não tem beleza e verdade não é política. Escola que não discute mais suas políticas de vida com beleza e verdade deixou de ser Escola. É um prédio. Que forma. Então, ressignificar aprendizagens passa por muitos atravessamentos, até se transformarem em aprendências.
Aprendências são processos complexos. Passam por desejos, vontades, sentidos, pulsões, emoções, criações, superações, invenções, quebras, rupturas, deslocamentos, abalos, recriações, transbordamentos. Se não passar por aí, não há aprendência. Aprender, ensinar e entrelaçar saberes científicos com a vida e com o que nela pulsa, são as razões que justificam a existência da escola, colocando a ela, suas claras funções políticas sociais de ampliar a visão de mundo e afirmar cidadanias coletivas solidárias. Aprendências e ensinâncias são adjetivações que existem para educandos e educadores também. Para todas as gentes. Para todos e todas, porque elas só se justificam se democratizadas.

Convite-ninho
Desejo, com respeito profundo, convidar todos os professores e todas as professoras para buscarmos, novamente, as razões pelas quais desejamos, um dia, exercer esta profissão. Também buscarmos os sentidos que nela ainda existem, para cada um e cada uma de nós. Também buscarmos quais as necessidades que a permeiam. Também buscarmos olhar os processos nas quais esta profissão se funda, e sem as quais não se consolida, nem acontece. Buscarmos nossos direitos, esses que, sem eles, não existiremos como educadores dignos. Escavarmos e encontrarmos, quiçá, de maneira potente, viva, forte, arrojada, os nossos próprios sentidos neste universo todo. E, se  encontrarmos ainda nosso elã vital, que nos façamos presentes e vivos, latentes e desejantes disso tudo, que possamos recuperar o desejo ardente de fazer ninhos nos espaços que escolhemos habitar, que desejamos estar e que desejamos viver esta tensão e esta paixão de sermos educadores e educadoras. Que ao reencontrarmos e recuperarmos nosso senso crítico, nossa posição, postura política e o nosso espírito de luta pela superação cotidiana das desigualdades sociais, culturais e econômicas, incluindo as nossas como professores e professoras, que é o que nos dá noção da realidade e sentimento de responsabilidade e compromisso, possamos produzir, com muita ternura e responsabilidade política, mais e outros elementos vivos que respondam, um pouco pelo menos, às muitas fomes que vivem nas infâncias e juventudes de nossas escolas. Por amor político. Por fraterna convivência. Pelo direito de aprender. Pela alegria de ensinar. Por amor político ao mundo. Por amor fraterno às pessoas. Por amor próprio, este que precisa existir em nós mesmos. Por amor cultural, por respeito à dignidade das crianças em viverem, em suas infâncias, experiências maravilhosas na escola e em seus outros processos educativos.
Como disseram as crianças do 1º ano: “a escola é um ninho de gente”. Como disse Diego, lá na EJA da Restinga: “ninho é o lugar onde tem paz. E na minha conversação com meia dúzia de botões, digo que pode-se desejar fazer ninhos. Podemos aprender a construir ninhos. Podemos desejar habitar ninhos. Podemos desejar desfrutar de ninhos. Podemos ser ninhos. Em nome de um “novo habitar humano”, como lembra-nos, tão suavemente Humberto Maturana em suas pesquisas, e tão ludicamente, Inha Bastos, em suas imagens inesquecíveis - que dá para inventarmos novos jeitos de habitar o mundo e de produzir novas criações para vivermos as próprias vidas, as vidas como instantes, a vida como estética, a vida como política de viver fraternidades.
      (Diário de Aula-Estudos de Campo - Produção Escrita num 1º de março em expansão)
                                               “É indo e vindo que um pássaro tece seu ninho”
                                                                          (Provérbio Africano)


*Professora pública alfabetizadora e docente em Curso de Formação Inicial de Professores, em escola pública.Mestre em Práticas Pedagógica/ Ética da Vida e Drª em Educação, em Pedagogias Poiéticas (Bolsa CAPES/PUCRS). Bolsista pesquisadora e estudante (UFRGS), palestrante de encontros formativos em Educação, conversadora de rodas, apaixonada pelas crianças e por processos educativos transformadores, desejando se fazer sempre ninho entre gentes.


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