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domingo, 4 de agosto de 2013

Filme : Ana Flor e as Narrativas Poéticas 


                                                
                                                              Uma bebê num Museu de Arte




          Dos Museus como espaços culturais vivos e potentes mediadores de aprendências 
          Da Mediação como possibilidade de compromisso com o outro e de amor pelo outro 


     Foi numa tarde de maio que desejei levar minha neta ao Santander Cultural, na Exposição Narrativas Poéticas, uma construção entre artes plásticas e poesias brasileiras. Movida pelo princípio construído desde sempre de que os processos culturais são de todos e todas, portanto, todos e todas devem ter acesso a eles,  convidei minha neta Ana Flor para a aventura de dialogar com as palavras, luzes e espaços num Museu como o Santander Cultural! Dias antes, andei por lá e percebi a vastidão e potência da arte que estava em exposição. O Princípio permaneceu como possibilidade concreta e lá fui eu, vó de primeira viagem, dias depois, levar a netinha de um ano para dentro deste Museu de Arte.

     Ana Flor encantou-se com tanta claridade bonita: espaço para engatinhar pela frente, altura a perder de vista, amplidão de luz e de beleza  que a clarabóia enorme possibilita. E na primeira engatinhada, ao levantar a cabeça para me olhar, percebi que seus olhos ficaram a caminho, porque se prenderam nos vitrais do teto maravilhosamente envidraçado do Santander. Seus olhos se prenderam nas cores dos vitrais como um sentido presente para ela mesma. Esse seu gesto desejante de beleza inaugurava nossa chegada no Santander. Ali, naquele olhar preso nos vitrais, iniciávamos a visita à Arte do Santander Cultural. Eu falava, levando as mãos no ar, tentando alcançar, com as palavras "cores", "lindo", "amarelo", "vermelho", "azul", "muitas cores", "beleza", palavras que tenho usado com ela em outros contextos coloridos e belos. E o seu olhar, curiosamente, preso naquele arco-íris feito de vidrosdearte, vitrais e olhar se encontraram. Tentava fazer uma mediação de "fascínio" ao que ambas víamos. Com a altura de seus doze metros de pé direito, o espaço térreo do Santander se faz muito amplo para todos, e para uma bebê, muito mais. Ana Flor entortava seu pescoço, para cima, olhando os vitrais, e ela mesma se perdendo na tontura boa de quando se vê beleza. E eu me sentia uma mediadora que não dava conta de tanta altura e distância, usava, então, minhas mãos no ar ao mesmo tempo que ficava na ponta dos pés para me esticar, e assim ia falando, falando palavras que me ajudassem a mediar...Ela, surpreendentemente, com sua língua de bebê de um ano, fazendo silabanês, construía conversinhas e diálogos entre as cores do telhado de vidro e nós. Passado este primeiro momento, digno de ser vivido por todos os bebês do mundo, iniciamos nossa imersão poética pelo mundo das pinturas, gravuras e desenhos de expoentes do Modernismo Brasileiro. Recepcionando-nos, encontramos Di Cavalcanti, com sua "Mulata na cadeira", um óleo sobre tela, de 1970, em maravilhosa cor-terra, telha, bem Brasil. Com Ana Flor no colo, para ficarmos da mesma altura, colocamo-nos, em companhia a esta mulata, que em posição de quem pensa, viaja em sua preocupada reflexão que nem podemos imaginar qual seja, porque só dela. Ficamos nós três, numa conversa entre mulheres. Eu, explicando a ela que aquela era uma mulher, e que bonita, e que pensadora, e que grande aquela obra( mexia minhas mãos em torno da obra), e a bebê, de novo, com seu olhar preso na mulata, como ela, viva, ali, e uma para a outra, vivas, e seus olhares, da mulata e da bebê inalcançáveis, impalpáveis, imensuráveis. Nem de que ordem, nem de que dimensão desejo saber, mas um  fato, sim: Ana Flor estabelecia uma relação com a "Mulata na cadeira", de Portinari. E assim, fomos andando e observando cada obra de arte. E a mesma capacidade de leitura e de concentração se fizeram presentes. Uma das obras que mais encantou Ana Flor foi "Fauna, Flora e Nativos Brasileiros", de Carybé, de 1953. Fui mediando, estabelecendo relações com figuras suas de afeto, como mamãe, papai, vovó, vovô, amiga, titio, dinda, dindo, e ela seguindo meus dedos com seus olhos de quem compreende, as árvores que ela já fala "arvri", e os passarinhos que ela aprendeu "pi, pi,pi,piuu" e rio, que ela diz "iuu". A tela é grande, onde coube muito olhar, muito tempo para olhar. O que comovia-nos muito de presenciar foi a concentração dela presa nas cores, presa na fala-entre-cores que eu fazia, murmurando, meio junto, meio não, palavrinhas de seu segredo. 

     Pensamos que aquilo tudo, aquilo que acabávamos de viver, já teria sido uma desvelação magnífica, quando encontramos algo que, então, surpreendentemente, foi a magia da tarde: a experiência estética que ela viveria com as poesias projetadas, por luzes, do alto para o chão da sala. Poemas e obras audiovisuais como de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Mário Quintana, Ferreira Gullar, Paulo Leminski eram projetados no chão, em palavras-luzes, às vezes, letra por letra, às vezes, verso por verso, ora na inteireza, ora por estrofe, criando um efeito de maravilhas aos olhos de qualquer visitante, imaginem de uma criança pequena. As Poesias dançavam, escorriam pelo chão. Ana Flor engatinhava até as letras e elas dançavam a sua frente. Quando ela tentava pegá-las, porque ela desejava agarrá-las, as letras saíam, disparavam, caminhavam, corriam, sumiam, "iam embora". Então, minha voz mediadora perguntava: "Poesia, onde você foi, poesia?", tentando demarcar a palavra "Poesia"...ao se deparar com a ausência da "Poesia", ela me olhava, e isso aconteceu repetidas vezes, desejando me perguntar "onde estaria a poesia (?)", e esperando, sim, de mim, sim, a ação mediadora. "Poesia, volta, poesia"...assim eu chamava aquele bando poético de letrinhas que ora chegavam rápido ou lentamente, inteiras ou aos pedaços, o que prendia muito o seu olhar também. O movimento das letras, daqueles seres que ainda ela não os sabia como "letras", mas que a encantavam pelo movimento iluminado. Um processo atordoante de bonito. Fizemos muitas vezes, do mesmo jeito, para trabalhar a memorística e o repertório, e de muitas outras maneiras. E sem falar que foi uma apresentação muito bela do que seja ou venha a ser,  Poesia para Ana Flor.

     Os Museus, quando são espaços culturais vivos, que constroem interlocuções e múltiplas experiências de desvendar arte e beleza são, na realidade, potentes mediadores de ensinâncias e aprendências. Minha relação com o Santander Cultural e as crianças vem de há muito tempo, com minhas turmas de uma Escola pública da Restinga. E sempre consigo me emocionar com sua capacidade de  produzir processos estéticos e de contribuir na formação e desenvolvimento de pessoas, a ponto de provocá-las a desejarem viver esteticamente suas vidas e a pensar a própria arte como vida. Trazendo propostas que exigem dos sujeitos inquietação e olhar crítico, esta instituição inventa e reinventa sua proposta com uma professora articuladora e mediadora de excelência na coordenação do seu pedagógico, a qual passou pela experiência escolar durante muitos anos e que tem aproximado o Santander do universo escolar com propriedade e sabedoria pedagógica.
     Pensar no compromisso que estes espaços culturais tem com a formação e experiência cultural das pessoas, em especial, de jovens e crianças, nos remete a pensar que tipos e formas de produções culturais tem sido criadas e acessadas, as quais possam constituir o outro como sujeito criador e emancipado, autônomo e livre. Remete-nos também a pensar o quanto, como educadores e educadoras, estamos ou não, mais ou menos, apropriados das produções culturais em suas múltiplas formas de existir - algo a pensar com mais profundidade em próximas narrativas.

     Mas, nesta tarde de maio, do Santander, saímos, os três, bem felizes: um avô que se realiza em construir estruturas para nossas invenções (neste caso, gravou o pequeno vídeo desta narrativa), uma vó que se fez "mediadora de bebê" e uma bebê aprendiz se inaugurando em sua própria longa-linda vida estética-cultural de maneira muito brincante. É claro que tivemos que celebrar: dali, fomos para uma cafeteria pedir café com sonhos. Após umas três semanas, quando ela começou a caminhar, voltamos ao Santander. E vivemos, novamente, experiências estéticas maravilhosamente educativas.

     Esta experiência demarca, em minha trajetória de educadora, algo novo: a mediação de  uma bebê em suas primeiras leituras de mundo, com a consciência da minha ação mediadora. Muito diferente de ter sido mãe na década de 80 e início de 90, quando apresentava o mundo cultural aos filhos, sem ter a consciência de que tudo aquilo era mediação, ou seja, existia a intuição de, o sentimento de necessidade de, mas não existia a intencionalidade política de.
     A beleza deste encontro imprescindível entre a intuição e a consciência é infinito na sua explicação, é quase impossível na sua compreensão plena, tal é sua complexidade. Mas quando se tem consciência das possibilidades de onde se quer chegar, mediar passa a ser uma ação promotora da problematização entre um não fazer ideia do que seja e um começar a ter ideia do que seja. 
     Mediar crianças é construir uma ponte (mediadora) entre um estado de não-saber, de ignorância, de ausência para um estado de possibilidades, de aprendência, de estabelecimento de relações que construirão um nível de pensamento que interligue os elementos, as informações e os transforme em novos saberes. Mediar uma criança requer humildade. Para ficar-se pequena, em tamanho e em jeito de mediar, que alcance o nível que a criança se encontre, não só de pensamentos mas de sentimentos também, constituindo uma primeira ponte entre suas ideias em chamas e sua emoção de criança. É uma mediação de afetos e de cognições, que se entrelaçam e se emaranham, para o "mediador mediar o desvelo". Doida ou sábia esta narrativa, não sei, mas os dois me agradam. Nada do que é doido é menos sábio, porque da loucura das ausências, nascem as mais belas presenças, e das sapiências que nunca foram percebidas como doidas há que se desconfiar. Mas que a mediação estética-artística-cultural de "bebês  bem bebês" é possível, não venha, ninguém, me contestar. Depois desta iluminura, perfeita iluminância, vivida com Ana flor em seu recém completo um ano de idade, eu é que desconfiarei como não ser possível fazer mediações pedagógicas, didáticas, culturais, com quaisquer pessoas, de quaisquer idades.
     A Mediação também é amor político cultural pelo outro. Alteridade pura. Solidariedade. Compaixão. Também é o desejo de que o outro realize o seu direito humano de ter acesso ao patrimônio cultural tanto quanto eu realizei e realizo este direito humano. A Mediação é um compromisso com a existência cultural plena do outro. É um compromisso com a Potência do outro. É um compromisso com a Bioantropoética do outro. É um compromisso com a cidadania e com a lucidez política-cultural do outro: isso é amar.




Um comentário:

Unknown disse...

A troca de experiencias acontece de maneira natural entre pais, filhos e assim simultaneamente. No entanto, quando temos a oportunidade de convivermos com nossos avós tudo se torna mais lúdico e marcante. E essa troca ficou clara no vídeo.
Lindo. Julia Turma: 22 AE